quinta-feira, 23 de julho de 2009

Salada com Café: Episódio 8 - O Bigode da Mona

Sei que a atualização não anda como antes. A idéia inicial era semanalmente atualizar o blog. Entretanto, o que importa é ele estar vivo! Mesmo que respirando por aparelhos...

Hoje vale a leitura do pequeno artigo de Hélio Schwartsman, articulista da Folha de São Paulo, publicado ontem na Folha Ilustrada, que trata acerca desta loucura que é a era digital e a propriedade sobre bits.

Afinal, podemos ser donos de bits? Donos de uma carga elétrica que consiste na menor unidade de informacão que pode ser armazenada e transmitida?

Ora, se o futuro será ser dono de bits, já vou comprar 2 servidores para fazer minha "Chácara".

Ab
s.!

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Era digital torna difícil ser um liberal autêntico

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O que adquirimos quando compramos um livro ou outro bem cultural por vias eletrônicas? Tornamo-nos proprietários dos bits que o compõem ou obtemos apenas o direito de desfrutar da obra?
No mundo pré-informático, a resposta era simples. Éramos donos do produto e poderíamos fazer com ele o que bem entendêssemos. Ninguém poderia me censurar por picotar de um livro de minha propriedade as páginas de que não gosto, mesmo que isso, ao fim do processo, resulte numa deturpação do pensamento do autor.
Agora que as possibilidades de reproduzir obras e intervir sobre elas ficaram quase ilimitadas, a questão se torna mais complexa. Até que ponto é preciso respeitar direitos do autor e a própria integridade da obra?
Em 2005, os EUA baixaram uma lei que autoriza empresas a adquirir DVDs e deles retirar palavrões e "cenas fortes" para revendê-los a um público religioso que prefere não ver essas coisas. A "sanitização" pode ser feita à revelia do autor.
Se achamos que criadores podem reclamar, então defendemos uma noção menos forte de propriedade -e a Amazon também pode confiscar o livro irregular. Se enfatizamos a posse material, então eu poderia comprar a Mona Lisa e pintar-lhe bigodes ou destruí-la, privando toda a humanidade desse retrato. Parece cada vez mais difícil ser um liberal autêntico.

* Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.



quarta-feira, 1 de julho de 2009

Salada com Café: Episódio 7 - A Águia e os Patos

Poucos mas ilustres saladeiros!

Depois de pouquinho mais de 2 meses voltamos a escrever!

Poderia ficar justificando minha ausencia, o motivo disto e daquilo, mas ao invés de ficar escrevendo coisas sem sentido, me dedicarei a postar o pequenino texto de Gaudencio Torquato publicado hoje no site "Migalhas".

Abracos à todos!
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Interpelando ato vil

A historinha é conhecida e, por ser muito boa, merece um repeteco.

Rui Barbosa, o Águia de Haia, chegava em casa, à noitinha, quando ouviu um barulho vindo do quintal. Chegando lá, viu um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o, ao tentar pular o muro com seus amados patos, passou-lhe um pito :

- Oh, bucéfalo anacrônico ! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da sua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.

E o ladrão, perplexo e confuso, com um fio de voz, perguntou :

- Doutor, eu levo ou deixo os patos ?

* Gaudêncio Torquato é jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.


quarta-feira, 29 de abril de 2009

Salada com Café: Episódio 6 - Eita língua obscena!

Boa madrugada aos poucos apreciadores das folhas, páginas e vegetais! Atualizando mais uma vez!

Semana passada (24 de abril) me deparei com mais um texto incrivelmente interessante do grande Adauto Suannes, agora sobre o significado das palavras da língua portuguesa. Poderia alongar esta pequena introdução, mas acabei de voltar do futebol semanal contra os futuros juristas da PUC, e não me restam mais forças...

Assim, ai vai o texto, bem como ao fim o v'ideo da bela música citada ao fim.

Aproveitem e comentem!

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OBSCENIDADES NOSSAS DE CADA DIA

Mostrei certa ocasião a meus alunos como as palavras e as expressões têm um destino. Nascem, crescem e, muitas vezes, acabam morrendo. Outras vezes se prostituem, ou, quem sabe?, se regeneram. O exemplo clássico é a palavra formidável, que qualquer garota ficaria feliz de ouvir, referindo-se a ela. Será? Vamos ao dicionário: "formidável - que inspira grande temor, que é perigoso/a, que tem aspecto terrificante". E você sempre dizendo que tem uma sogra formidável, é ou não é? Pois se o Jarbas não tivesse enterrado o latim, dizendo que a sepultura era o destino de uma língua morta, você saberia que formido, em latim, era o nome que se dava ao nosso conhecido espantalho, destinado justamente a causar medo aos pássaros. Formidável, né não?

A propósito, pergunte aos manos ai da sua rua que vem a ser galera. Onze entre dez deles dirá que é um conjunto de torcedores de uma partida de futebol ou de um show de forró ou de rock. Se você disser a eles que, na verdade, galera é "um antigo navio a vela, de mastreação constituída de gurupés e três mastros de brigue", como diz tio Aurélio, eles te cobrirão de porradas. Palavra, por sinal, que provém de porrete (é uma síncope de porretada) e não deriva de porra, como muita senhora imagina, ao censurar seu uso pelo neto, aquele boca-suja, supondo que estejamos falando do líquido fecundante produzido pelos órgãos sexuais dos animais machos, o esperma, a que, em linguagem chula, porra se refere, tanto quanto esporro e langonha, ainda segundo o mesmo pai-dos-burros, muito embora eu jamais tenha ouvido esta última e medonha palavra, que mais parece nome de ex-diretor do Banco Central. Aliás, muito embora registre que porra! seja uma interjeição, mestre Aurélio dá a ela o sentido de enfado, impaciência, o que é menas verdade, como se diz por aí. Se alguém se admira com algo, lá vem o pô!, que, segundo o mesmo professor, é forma sincopada do termo que ele xinga de chulo. Se eu digo "pô, que mulherão que virou aquela mina!" eu não estarei mostrando impaciência, nem enfado, mas algo muito diverso, como sabeis.

Pois voltemos à minha sala de aula. Para confirmar o preconceito que encobre as chamadas chulices (na verdade, quando falamos em "baixo calão" estamos admitindo a existência de um "alto calão", que são os palavrões utilizados pelas classes "superiores"), contei aos alunos a história da Tereza, uma prostituta que engravidou e deu à luz o José. Ela era conhecida na região como Terê, uma abreviatura de seu nome, da mesma forma como o filho passará a ser o Zé. E escrevi na lousa: "José é filho da prostituta Tereza". A classe, a meu pedido, leu a frase, sem atentar para o destino que os aguardava. Depois de algumas considerações, suprimi o nome da mãe, risquei o José e escrevi no alto "Zé", seu apelido. E fui suprimindo da profissão da mãe dele todas as letras desnecessárias, pois, da mesma forma como de Tereza ela se tornara Terê, eliminando várias letras do nome de sua profissão, teríamos uma abreviatura do nome da tal profissão, composto apenas da primeira e das três últimas letras da palavra prostituta. E pedi à classe que lesse o resultado. "José é filho da ..." O número de alunos que conseguiram falar foi mínimo, embora eu estivesse querendo dizer a mesma coisa que eles haviam dito antes.

Isso para não falar da aluna que eu havia reprovado e que se expressou sem meias palavras: "mestre, você me fudeu!" Verbo esse, aliás, empregado por um advogado para ameaçar um oficial de justiça: "você comigo está fodido!" Pois tal ameaça redundou em denúncia e condenação. O recurso caiu nas mãos de ninguém menos do que o Alberto Silva Franco, que deu por não caracterizada ameaça alguma, pois a palavra empregada era inespecífica. Ou, mais exatamente, plurívoca. E pode até mesmo ser elogiosa, conforme as circunstâncias, como quando designa valentia: "fulano é um sujeito fodido!" No dia do tal julgamento, a galeria (conjunto de espectadores, que os americanófilos e os comedores de mac-lanche denominam "audiência", que, como sabemos, é sessão de julgamento judicial) estava repleta, para ter o prazer de ouvir o Silva Franco falar, vezes e vezes, a tal obscenidade. E ele, que é, de fato, um cara fodido, assim o fez. Quem diria!

Falo também (o trocadilho foi involuntário) da distinta senhora que, numa festa, se gabava de haver esculhambado seu desafeto em uma discussão. Apenas por curiosidade, perguntei-lhe o que ela havia feito com os colhões do homem, o que gerou um esporro daqueles, para continuarmos na chulice. E eu fui obrigado a recuar, sem que os presentes percebessem que eu estava indo com o cu para trás, mesmo porque poucos se dão conta da origem da tal palavra. E se numa reunião os componentes de um grupo também forem recuando e alguém ficar sozinho, ele certamente comentará que "ficou na mão", sem atentar que se está referindo à situação de alguém que, tendo sido abandonado pelo companheiro ou a companheira, não terá outra forma de aplacar a inaplacável libido senão pela masturbação.

E olhe que eu poderia falar sobre as flores, essas maravilhas que Deus espalhou na Terra para encanto de nós todos, que não atentamos para o fato de serem elas, ao fim e ao cabo, o órgão sexual da planta. Olhe para um hibisco, por exemplo, e veja se há algo mais obsceno na Natureza. Ou uma orquídea. Cujo nome, aliás, lembra uma espécie que continha um talo e duas bolotas embaixo, donde o nome escolhido pelo seu nominador: orchis (em grego, "pênis") e idéa (em grego, "aparência").

Pensando bem, como as crianças estão entrando na sala, acho melhor fechar o meu dicionário, esse repositório de obscenidades, escrito pelo Aurélio, aquele fescenino, cujo primo nos mandou jogar bosta na pobre da Geni.

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A coluna Circus, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes, autor do livro "Justiça & Caos".


terça-feira, 21 de abril de 2009

Salada com Café: Episódio 5 - Mandando bala em Sundance

Caros saladeiros de plantão, o blog ainda vive! Guardem as lágrimas para depois!

Há alguns dias atrás tive o prazer de ver o documentário intitulado "Send a Bullet", do jovem diretor Jason Kohn, que foi premiado no festival de Sundance em 2007.

Trata-se de um trabalho que faz uma estranha conexão entre 3 coisas aparentemente divergentes entre si: a corrupção no Brasil, cirurgia plástica, e os sequestros em São Paulo.

Com uma linda fotografia, esse documentário, apesar de "forçar a barra" em muitos momentos (p.ex.: quando um policial afirma teoricamente ser possível comprar armas nucleares no Brasil), merece ser assitido por todo brasileiro.

Apesar de muitas opiniões contrárias à minha, que vão a favor do filme, faço aqui minha recomendação pela sua visualização. Entretanto, preciso deixar constado que o diretor não fez tal obra audiovisual para ser vista em território brasileiro. Pode parecer estranho, mas é verdade.

Assim, deixo um pouco de mistério no ar sobre o assunto, deixando aqui somente o trailer:



Hoje, como defensor dos direitos autorais não poderia postar as partes do filme. Todavia, em razão se sua "não exibição" no Brasil, me permito contar aos saladeiros que aqui permeiam que o documentário encontra-se na íntegra e legendado no youtube, dividido em 9 partes. Enjoy!

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Salada com Café: Episódio 4 - Os "Coroné" do Brasil

Estamos aqui postando mais uma vez. O blog ainda que visitado somente por este que vos escreve, e pelo colega Rafael C., ainda dá sinais de vida.

Na semana passada, apesar de a repercussão não ser tão grande, dois peixes muito grandes foram alvos da Polícia Federal: os Tranchesi, e os Camargo Correa. Está até parecendo nome de máfia italiana dos anos 30. Mas que fique bem claro, não estou dizendo que essas duas são um grupo criminoso. Reservo-me no direito de só obter uma conclusãoobjetiva quando a ultima instância do Judiciário nacional proferir a sua decisão. E o famoso princípio legal, que surgiu após a inquisição, indubto pro reu, ou seja, "na dúvida, a favor do réu".

Mas o Brasil sempre foi assim não é? Há duas semanas acabei de ler o Livro "Código da Vida", de Saulo Ramos. Não posso dizer que tudo que lá foi dito opera-se como verdade, mas que sua visão, como alguém que trabalhou nas entranhas da [nojenta] máquina política, merece ser considerada.

São pessoas, que gastam tanto tempo e energia matutando como passar a perna nos outros, que me faz refletir: por qual motivo não invertem essa ordem de raciocínio? Passam a raciocinar como melhorar o Brasil?

Essa é uma pergunta que ainda não posso responder. Me falta ainda muito conhecimento.

Mas por ora ficamos com o pensamento do jornalista e professor da USP Gaudencio Torquato, colunista da secão "Porandubas Políticas", publicado hoje.

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Coronelismo

O coronel Lucas Pinto, que comandava a UDN no Vale do Apodi (RN), não dormia em serviço. Quando o Tribunal Eleitoral exigiu que os títulos eleitorais fossem documentados com a foto do eleitor, mandou um fotógrafo "tirar a chapa" do seu rebanho, aliás, do seu eleitorado. Numa fazenda, um eleitor tirava o leite da vaca quando foi orientado a posar para a foto. Não teve dúvida : escolheu a vaca como companheira do flagrante. Mas o fotógrafo, por descuido, deixou-o fora. O coronel Lucas Pinto não teve dúvida. Ao entregar as fotos aos eleitores, deparando-se com a vaca, não perdeu tempo e ordenou ao eleitor : "prega a foto aí, vote assim mesmo, na próxima eleição, nós arrumamos a situação".

...Noutra feita, o coronel levou as urnas de Apodi para o Juiz, em Mossoró, quase 15 dias após as eleições. Tomou uma bronca.

- Coronel, isso não se faz. As eleições ocorreram há 15 dias.

- Pode deixar, "seu" Juiz. Na próxima, vou trazer bem cedo.

Não deu outra. Na eleição seguinte, três dias antes do pleito, o velho Lucas Pinto chegava com um comboio de burros carregando as urnas. Chegando ao cartório, surpreendeu o juiz :

- Taqui, seu juiz, as urnas de Apodi.

- Mas coronel, as eleições serão daqui a três dias.

- Ah, seu juiz, não quero levar mais bronca. Tá tudo direitinho. Todos os eleitores votaram. Trouxe antes para não ter problema.

Idos das décadas de 50/60. Não havia grandes empreiteiras financiando campanhas. A empreitada ficava mesmo a cargo dos coronéis.

* Gaudêncio Torquato é jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.

terça-feira, 24 de março de 2009

Salada com Café: Episódio 3 - Um domingo com Thom Yorke

Neste fim de semana fui no show do Radiohead, e que show!

Só pra aquecer os ouvidos começou com Los Hermanos, para depois ficarmos abismados com o visual do Kraftwerk, para então, quando todos ignoravam como dava as dores do corpo, o Radiohead liderado por Thom Yorke adentrar o palco.

O show foi inexplicável, tanto musicalmente como pelo visual. Lembro do meu irmão me comentando: “É um dos melhores shows da atualidade”.

Elogios à parte, não vivemos só de coisas boas, e no Radiohead não podia ser diferente, principalmente na hora da saída. Como escoar de uma vez só trinta mil pessoas?

“Que tal uma só saída!” – Ainda pego o cidadão que deu essa idéia. E assim ficamos. Uma saída aberta. Umas cinco saídas de emergência com seguranças impedindo qualquer tentativa de “escaparmos”. O jeito foi sentar e esperar.

Mas quando eu achava que eu estava na pior, sempre lembro que alguém pode estar pior. E foi hoje, em meio às páginas do jornal Destak que eu li o que foi escrito por Fernando Luna, que fiz questão de transcrever abaixo:

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A ESPERA DO RADIOHEAD

A espera pelo show do Radiohead no Brasil só não foi mais longa do que a espera para sair do estacionamento do show do Radiohead.

E olha que eles demoraram vinte anos, sete álbuns e trinta milhões de discos para finalmente tocar aqui. Mas a organização do Just a Fest e a empresa de manobristas Garage Inn conseguiram a proeza de fazer com que os carros levassem quase duas horas para escapar do estacionamento oficial.

Duas horas, praticamente o mesmo tempo que durou o show. Deve haver algum cálculo matemático capaz de provar que, se tudo é relativo, em escala de estacionamento as duas horas valem tanto quanto os vinte anos de espera.

Oooommmmm. Relaxa. Lembra do show perfeito, dos caras tocando Exit Music, de Faust Arp sendo aplaudida no meio.

Duas horas, e na madrugada de domingo para segunda (tudo bem, a alternativa era ficar em casa vendo o Fantástico). Duas horas, depois de pagar R$ 35 pela vaga (a única coisa mais inflacionada que preço de show no Brasil é o preço do estacionamento do show). Duas horas, mesmo que a vaga na verdade fosse improvisada no meio de um terreno baldio, íngreme, escuro e sem sinalização.

Calma. Passou, passou. Pensa na multidão cantando Karma Police, em Weird Fishes. Respira fundo. Chero de mato? Terra molhada?

Não, não é delírio. Choveu à tarde, e o estacionamento era de terra. Ou de lama, dependendo do lugar. Parecia um festival de rock rural, um trecho da estrada de Ouro Fino, com o menino na porteira ajudando a procurar uma vaga.

Os estimados três mil carros formaram o maior Tetris da história, encaixados uns nos outros como se fossem as pecinhas do jogo.

Foi como entrar naquele conto do escritor Julio Cortazar, “A Autopista do Sul”. Na história, um domingo como este último termina num engarrafamento definitivo. Daqueles em que só resta desligar o carro e esperar. Esperar por duas horas, por duas horas e... Olha a recaída. Inspira, expira. Mentaliza a guitarra de House of Cards, os versos de Lucky.

Ao contrário da ficção, em que ninguém sabe a causa do engarrafamento, ali não era difícil descobrir a origem do caos. Só havia uma única saída para todos os veículos.

Um manobrista resumiu a lógica torta da (des)organização do evento: “O bagulho é que todo mundo quer sair na mesma hora”. De repente, as palavras de Paranoid Android passaram a fazer mais sentido: “Quando eu for rei, você será o primeiro contra o paredão”. Calma, respira.

*Fernando Luna é Diretor editorial da Revista Trip.



segunda-feira, 9 de março de 2009

Salada com Café: Episódio 2 - Higuita o Escorpião

Boa tarde caros saladeiros!

Mais um post! Estamos vivos ainda! Ai vai um excelente texto do engenheiro civil e professor da USP Marcos Rodrigues, publicado na Edicão 15 da Revista "Brasileiros" (outubro/2008), diponível no link RARAS.

Segue também o vídeo da linda defesa do goleiro Higuita, que ao fim farão questão de assistir!

Aproveitem!

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Como eu morava no primeiro andar, foi lá debaixo mesmo que tudo veio. Ela bateu o portão berrando que eu era um louco, esquisotímico. Não agüentava mais meu transtorno obsessivo-compulsivo. Esquisotímico? O que é isso? E meus vizinhos, e o porteiro, como é que fica tudo isso?

A história é que eu gosto de futebol. Na verdade, só de algumas coisas do futebol. Não agüento esse futebol que anda por aí. Com esse negócio de passar de lado, se atirar no chão, beijar camisa, abraçar técnico, comentar juiz. Eu não agüento. Por isso me dedico ao culto dos grandes momentos do futebol. O que eu gosto mesmo são as coisas raras do futebol. Que são raras, claro. Gosto mais ainda das coisas singulares. Essas, curiosamente, estão ficando cada vez mais raras.

Foi esse meu interesse, minha devoção, que gerou toda a gritaria no portão. Eu havia começado apresentando minha visão do assunto e, numa deferência especial, apresentei a ela a minha maior preciosidade. Falei da defesa do escorpião realizada pelo grande goleiro René Higuita, colombiano, no estádio de Wembley, contra a Inglaterra, na primavera de 1995.

Ia o jogo já pela metade quando uma bola vai a gol. Digo que a bola foi a gol porque foi mal chutada por um inglês inexpressivo no meio do arco. Dois palmos acima da cabeça do goleiro. Uma bola fácil. Mas Higuita não é um homem para coisas fáceis. Não resistiu. Arriscou a carreira. Arriscou a vida. Arriscou tudo: em cima da linha de gol, ele me dá um salto para frente, com os braços abertos, como se fosse dar um anjo de trampolim, e defende a bola com a sola das chuteiras, que girou em suas costas rumo ao quadril. Desceu ao gramado já imortal. Essa eu vi, lá mesmo. O estádio paralisou. O jogo parou naturalmente, o juiz entorpecido não sabia o que fazer. Gradualmente começou um aplauso longo, perplexo e respeitoso. O Higuita sabia o que havia ocorrido. Eu também, presto atenção nessas coisas: foi um evento futebolístico singular individual com minha participação presencial passiva. Higuita não precisou de ninguém. Aí está a superioridade dele sobre as coisas do Pelé que, coitado, sempre precisou de um coadjuvante ativo. Como disse, a bola veio ao Higuita. Ele, iluminado, naquele átimo, cedeu à compulsão. Naquele instante fez, pela primeira vez no futebol, o belo individual. Isso tudo num Wembley ensolarado, coisa bastante rara, mas não singular.

Como ela não entendia de futebol e não havia nem ouvido falar da memorável defesa, me ofereci para ilustrar. Eu já havia visto dezenas, talvez centenas, de vezes.

Fiquei na cabeceira e pedi que ela, do pé da cama, jogasse o travesseiro numa parábola que passasse dois palmos acima de minha cabeça. Ela até que fez tudo direitinho, mas falhei na primeira, claro. Não passei nem perto. Para que ela não pensasse que eu era louco, expliquei que nem me passava pela cabeça fazer algo próximo do Higuita, eu queria apenas ilustrar. Eu representaria para que ela entendesse. Só isso. Ela insistiu que já havia entendido, mas eu pedi que jogasse outra vez, ela aquiesceu. Errei de novo. E olha que eu estava em minha casa, na minha cama, na minha cabeceira, com meu travesseiro.

Pedi mais uma vez e mais outra e assim fomos tentando. Depois de vinte e oito, ela disse vamos parar, definitivamente, vamos parar. Eu disse não posso. Ela argumentou e eu disse por favor, não posso parar. Eu disse ainda educadamente pelo amor de Deus, até eu acertar. Ela foi se irritando e, em meio a umas discussões desgastantes, fomos tentando. Eu não estou em forma e fui me cansando. Decerto não havia nem mais graça nos meus saltos. Mas eu precisava me livrar daquele encargo. E fui me cansando e tudo foi ficando mais difícil, sobretudo com ela. Nós estávamos na quadragésima oitava e eu precisava acertar em cinqüenta. Precisava porque precisava. Mas ela inexplicavelmente parou e jogou o travesseiro pela janela. Disse game over. Assim mesmo, uma frescura.

Implorei, pedi outro, pelo amor de Deus, mais unzinho, mas não teve jeito mesmo. E o amor? Onde foi parar este comportamento moral axiológico mais elevado? E o partilhar da impressão estética singular? Ela não quis saber de mais nada. Nem de mim. Se vestiu, pegou a bolsa e se mandou. Uma fera.
Eu, incompreendido, vesti meu pijama e fui pra janela. Lá de cima escutei tudo e, ofendido, fui dormir. Pensando na mulher do Higuita. Decerto uma mulher sensata, amorosa e compreensiva. São muito raras hoje em dia.

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*Marcos Rodrigues é engenhero civil pela Escola Politécnica da USP, Master of Sciences, pela University of Birmingham, Inglaterra, e Doctor of Philosophy pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli - USP, na área de Informações Espaciais.