terça-feira, 24 de março de 2009

Salada com Café: Episódio 3 - Um domingo com Thom Yorke

Neste fim de semana fui no show do Radiohead, e que show!

Só pra aquecer os ouvidos começou com Los Hermanos, para depois ficarmos abismados com o visual do Kraftwerk, para então, quando todos ignoravam como dava as dores do corpo, o Radiohead liderado por Thom Yorke adentrar o palco.

O show foi inexplicável, tanto musicalmente como pelo visual. Lembro do meu irmão me comentando: “É um dos melhores shows da atualidade”.

Elogios à parte, não vivemos só de coisas boas, e no Radiohead não podia ser diferente, principalmente na hora da saída. Como escoar de uma vez só trinta mil pessoas?

“Que tal uma só saída!” – Ainda pego o cidadão que deu essa idéia. E assim ficamos. Uma saída aberta. Umas cinco saídas de emergência com seguranças impedindo qualquer tentativa de “escaparmos”. O jeito foi sentar e esperar.

Mas quando eu achava que eu estava na pior, sempre lembro que alguém pode estar pior. E foi hoje, em meio às páginas do jornal Destak que eu li o que foi escrito por Fernando Luna, que fiz questão de transcrever abaixo:

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A ESPERA DO RADIOHEAD

A espera pelo show do Radiohead no Brasil só não foi mais longa do que a espera para sair do estacionamento do show do Radiohead.

E olha que eles demoraram vinte anos, sete álbuns e trinta milhões de discos para finalmente tocar aqui. Mas a organização do Just a Fest e a empresa de manobristas Garage Inn conseguiram a proeza de fazer com que os carros levassem quase duas horas para escapar do estacionamento oficial.

Duas horas, praticamente o mesmo tempo que durou o show. Deve haver algum cálculo matemático capaz de provar que, se tudo é relativo, em escala de estacionamento as duas horas valem tanto quanto os vinte anos de espera.

Oooommmmm. Relaxa. Lembra do show perfeito, dos caras tocando Exit Music, de Faust Arp sendo aplaudida no meio.

Duas horas, e na madrugada de domingo para segunda (tudo bem, a alternativa era ficar em casa vendo o Fantástico). Duas horas, depois de pagar R$ 35 pela vaga (a única coisa mais inflacionada que preço de show no Brasil é o preço do estacionamento do show). Duas horas, mesmo que a vaga na verdade fosse improvisada no meio de um terreno baldio, íngreme, escuro e sem sinalização.

Calma. Passou, passou. Pensa na multidão cantando Karma Police, em Weird Fishes. Respira fundo. Chero de mato? Terra molhada?

Não, não é delírio. Choveu à tarde, e o estacionamento era de terra. Ou de lama, dependendo do lugar. Parecia um festival de rock rural, um trecho da estrada de Ouro Fino, com o menino na porteira ajudando a procurar uma vaga.

Os estimados três mil carros formaram o maior Tetris da história, encaixados uns nos outros como se fossem as pecinhas do jogo.

Foi como entrar naquele conto do escritor Julio Cortazar, “A Autopista do Sul”. Na história, um domingo como este último termina num engarrafamento definitivo. Daqueles em que só resta desligar o carro e esperar. Esperar por duas horas, por duas horas e... Olha a recaída. Inspira, expira. Mentaliza a guitarra de House of Cards, os versos de Lucky.

Ao contrário da ficção, em que ninguém sabe a causa do engarrafamento, ali não era difícil descobrir a origem do caos. Só havia uma única saída para todos os veículos.

Um manobrista resumiu a lógica torta da (des)organização do evento: “O bagulho é que todo mundo quer sair na mesma hora”. De repente, as palavras de Paranoid Android passaram a fazer mais sentido: “Quando eu for rei, você será o primeiro contra o paredão”. Calma, respira.

*Fernando Luna é Diretor editorial da Revista Trip.



segunda-feira, 9 de março de 2009

Salada com Café: Episódio 2 - Higuita o Escorpião

Boa tarde caros saladeiros!

Mais um post! Estamos vivos ainda! Ai vai um excelente texto do engenheiro civil e professor da USP Marcos Rodrigues, publicado na Edicão 15 da Revista "Brasileiros" (outubro/2008), diponível no link RARAS.

Segue também o vídeo da linda defesa do goleiro Higuita, que ao fim farão questão de assistir!

Aproveitem!

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Como eu morava no primeiro andar, foi lá debaixo mesmo que tudo veio. Ela bateu o portão berrando que eu era um louco, esquisotímico. Não agüentava mais meu transtorno obsessivo-compulsivo. Esquisotímico? O que é isso? E meus vizinhos, e o porteiro, como é que fica tudo isso?

A história é que eu gosto de futebol. Na verdade, só de algumas coisas do futebol. Não agüento esse futebol que anda por aí. Com esse negócio de passar de lado, se atirar no chão, beijar camisa, abraçar técnico, comentar juiz. Eu não agüento. Por isso me dedico ao culto dos grandes momentos do futebol. O que eu gosto mesmo são as coisas raras do futebol. Que são raras, claro. Gosto mais ainda das coisas singulares. Essas, curiosamente, estão ficando cada vez mais raras.

Foi esse meu interesse, minha devoção, que gerou toda a gritaria no portão. Eu havia começado apresentando minha visão do assunto e, numa deferência especial, apresentei a ela a minha maior preciosidade. Falei da defesa do escorpião realizada pelo grande goleiro René Higuita, colombiano, no estádio de Wembley, contra a Inglaterra, na primavera de 1995.

Ia o jogo já pela metade quando uma bola vai a gol. Digo que a bola foi a gol porque foi mal chutada por um inglês inexpressivo no meio do arco. Dois palmos acima da cabeça do goleiro. Uma bola fácil. Mas Higuita não é um homem para coisas fáceis. Não resistiu. Arriscou a carreira. Arriscou a vida. Arriscou tudo: em cima da linha de gol, ele me dá um salto para frente, com os braços abertos, como se fosse dar um anjo de trampolim, e defende a bola com a sola das chuteiras, que girou em suas costas rumo ao quadril. Desceu ao gramado já imortal. Essa eu vi, lá mesmo. O estádio paralisou. O jogo parou naturalmente, o juiz entorpecido não sabia o que fazer. Gradualmente começou um aplauso longo, perplexo e respeitoso. O Higuita sabia o que havia ocorrido. Eu também, presto atenção nessas coisas: foi um evento futebolístico singular individual com minha participação presencial passiva. Higuita não precisou de ninguém. Aí está a superioridade dele sobre as coisas do Pelé que, coitado, sempre precisou de um coadjuvante ativo. Como disse, a bola veio ao Higuita. Ele, iluminado, naquele átimo, cedeu à compulsão. Naquele instante fez, pela primeira vez no futebol, o belo individual. Isso tudo num Wembley ensolarado, coisa bastante rara, mas não singular.

Como ela não entendia de futebol e não havia nem ouvido falar da memorável defesa, me ofereci para ilustrar. Eu já havia visto dezenas, talvez centenas, de vezes.

Fiquei na cabeceira e pedi que ela, do pé da cama, jogasse o travesseiro numa parábola que passasse dois palmos acima de minha cabeça. Ela até que fez tudo direitinho, mas falhei na primeira, claro. Não passei nem perto. Para que ela não pensasse que eu era louco, expliquei que nem me passava pela cabeça fazer algo próximo do Higuita, eu queria apenas ilustrar. Eu representaria para que ela entendesse. Só isso. Ela insistiu que já havia entendido, mas eu pedi que jogasse outra vez, ela aquiesceu. Errei de novo. E olha que eu estava em minha casa, na minha cama, na minha cabeceira, com meu travesseiro.

Pedi mais uma vez e mais outra e assim fomos tentando. Depois de vinte e oito, ela disse vamos parar, definitivamente, vamos parar. Eu disse não posso. Ela argumentou e eu disse por favor, não posso parar. Eu disse ainda educadamente pelo amor de Deus, até eu acertar. Ela foi se irritando e, em meio a umas discussões desgastantes, fomos tentando. Eu não estou em forma e fui me cansando. Decerto não havia nem mais graça nos meus saltos. Mas eu precisava me livrar daquele encargo. E fui me cansando e tudo foi ficando mais difícil, sobretudo com ela. Nós estávamos na quadragésima oitava e eu precisava acertar em cinqüenta. Precisava porque precisava. Mas ela inexplicavelmente parou e jogou o travesseiro pela janela. Disse game over. Assim mesmo, uma frescura.

Implorei, pedi outro, pelo amor de Deus, mais unzinho, mas não teve jeito mesmo. E o amor? Onde foi parar este comportamento moral axiológico mais elevado? E o partilhar da impressão estética singular? Ela não quis saber de mais nada. Nem de mim. Se vestiu, pegou a bolsa e se mandou. Uma fera.
Eu, incompreendido, vesti meu pijama e fui pra janela. Lá de cima escutei tudo e, ofendido, fui dormir. Pensando na mulher do Higuita. Decerto uma mulher sensata, amorosa e compreensiva. São muito raras hoje em dia.

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*Marcos Rodrigues é engenhero civil pela Escola Politécnica da USP, Master of Sciences, pela University of Birmingham, Inglaterra, e Doctor of Philosophy pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli - USP, na área de Informações Espaciais.


sexta-feira, 6 de março de 2009

Salada com Café: Episódio 1 - Allan Stewart Königsberg

Inaugurando este blog, que, resumindo, pretende divulgar textos interessantes que encontro ou alguns não tão interessantes que escrevo, transcrevo aqui o divertido texto do migalheiro Adauto Suannes, publicado na data de hoje na coluna "Circus" do site Migalhas, e na sequencia um pequeno vídeo do ilustre Woody Allen em uma de suas performances no jazz nova iorquino:

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SCRIPT

"Não é que eu tenha medo da morte. Eu apenas não gostaria de estar lá quando isso acontecesse."

Allan Stewart Königsberg
(vulgo Woody Allen)


Se você reparar bem, os filmes do Woody Allen seguem um mesmo roteiro. Ele pode até trocar Manhattan por Londres ou Barcelona, mas o jeitão desajeitado do personagem é sempre o mesmo. Rigorosamente, ele fala de si mesmo o tempo todo. E quem de nós não é assim?

Pois o personagem de nossa proposta cinematográfica de hoje é exatamente o Woody Allen, que está se dirigindo, com toda pressa, ao banheiro de uma dessas lojinhas de beira de estrada, onde se vende desde pneu até camisinha. Ele, evidentemente, tem junto ao ouvido direito seu inseparável telefone celular, no qual ele trava um diálogo incompreensível, como é próprio dos personagens interpretados por ele, tendo do outro lado alguém que não se descobre se é um homem, uma mulher, um elefante ou um cachorro. Ainda falando ao telefone, ele se dirige ao local adequado e com a mão esquerda abre a braguilha da calça. Em seguida discute ao telefone e depois leva a mão esquerda até a calça, fechando o zíper da mencionada braguilha. Sempre falando e falando, ele para diante de um espelho enorme, que o mostra de corpo inteiro.

Que faz um espelho daquele tamanho naquele minúsculo banheiro? Mistério! O fato é que o nosso personagem está falando ao telefone e, ao mesmo tempo, admirando seus traços fisionômicos, aqueles mesmos traços que sua mãe teria apalpado logo que ele nasceu, pois ela era cega. Com as duas mãos sobre o rosto da criança, ela teria perguntado à enfermeira: "Mas onde está a parte de cima?" Morreu de desgosto alguns dias depois, segundo contaria a Dianne Keaton em sua autobiografia, onde ela incluiria a biografia dele, vingando-se porque ele havia publicado sua autobiografia dele, incluindo aí a biografia dela. Isso se ela escrevesse uma autobiografia. E se me consultasse antes.

Finalmente, sempre dentro do banheiro e diante do tal espelho, o tal personagem encerra a conversa e leva o celular até o bolso da calça, quando toma conhecimento que não havia dado as tradicionais três balançadinhas no outrora chamado órgão viril, não hoje, com essa expansão do. Resultado: a cabeça do mencionado órgão, descansando sobre a cueca, liberou o restante do líquido disponível, que, agora, produz uma mancha oval, que a câmera faz questão de mostrar em close. Ele, claro, tem um chilique daqueles que já teve em inúmeros outros filmes e procura, com o mesmo desajeito, remediar a situação, com um expediente mais inadequado do que outro, como tentar sair do banheiro carregando a lata de papel usado com as duas mãos diante do corpo. Desiste da idéia ao notar que a vendinha está vazia.

Deixa ali a tal lata e dirige-se então à prateleira de livros, onde procura algum livro de filosofia, já que o Königsberg se acha grande conhecedor dos clássicos, coisa que ele deixa claro em seus filmes, a conselho do psiquiatra que ele visita, sem resultado palpável, há mais de trinta anos, tudo segundo o depoimento da Dianne. Pega um livro de bolso que tem por autor um tal de Platão. "Deste tamanho, deveria chamar-se Platinho" diz ele e devolve o livro à prateleira. Com seu jeito desajeitado, ao devolver o livro, esbarra numa prateleira ao lado, derrubando ao solo um pacote que contém carne de coelho, logo coelho, que lhe dá urticárias. Em sua imaginação fértil, a caixa, quando cai ao solo, se abre e partes do coelho são arremessadas para todo lado, mexendo-se como se estivessem vivas. Uma senhora gorda, sempre há uma senhora gorda em seus filmes! desmaia ao ver aquilo. Ele se ajoelha e se põe a chamar os pedaços de coelho de volta para a caixa, dizendo cúti, cúti, cúti, como diria se estivesse recolhendo pintinhos de volta à saia da mamãe galinha. Passado o delírio, ele pega a caixa, que permaneceu fielmente fechada o tempo todo em que esteve no solo, e se dirige ao caixa da loja.

Na verdade, a pequena loja possui dois caixas. O mais próximo é um homem de cara mal-humorada, que está envolto em fumaça, que toma conta daquele aquário onde ele lê o jornal do dia, com um charuto entre os dedos da mão direita.

- Fumante? indaga o caixa.

- Deus me livre! Morrer de câncer, nem pensar. Prefiro infarto do miocárdio, ou derrame cerebral, ou Aids, ou ser atropelado por uma bicicleta na ponte do Brooklin.

- Então dirija-se ao outro caixa, diz o homem sem tirar os olhos do jornal.

O outro caixa não tem cara mais amigável do que o primeiro. Aliás, em todo filme do Woody Allen o caixa é sempre um homem, coisa ligada à infância do autor, figura paterna, provedor da família, pão duro filho de uma égua etc. Aliás, recomendação de seu psicoterapeuta, segundo nos diz a mesma Diane, cuja palavra sempre deve ser recebida com reservas, como a palavra de toda ex-esposa que se preze, mas que serve para umas fofocas dessas. O fato é que o nosso personagem coloca a caixa de mercadoria sobre o balcão e o caixa faz cara de nojo.

- Você também não gosta de coelho?

- Só se estiver vivo. E na horta do meu vizinho, responde o caixa, sem esboçar o sorriso que a piada merecia. Por falar em estar vivo, com essa sua cara, o senhor bem que está precisando de um formicida. Temos doses individuais.

- Aquela queimação goela abaixo? nem pensar, diz o Woody.

- Tenho, para casos assim de pessoas com pressa, um estoque de revólveres da pior qualidade, alguns deles custando até menos do que uma dose de formicida. Tudo o que ele consegue fazer é dar um ou, no máximo, três tiros. Não mais. Se lhe interessa, está ali naquela prateleira, ao lado dos doces e das chupetas.

- E acha que ficaria bem eu morto no assoalho da sala tendo ao lado um revólver que não fosse de aço sueco, cabo de madrepérola e pelo menos cinco balas intactas no tambor?

- São US$ 3,37, diz o caixa com o mesmo entusiasmo.

- Com as balas ou sem elas?

- Estou falando do, argh!, coelho, diz o caixa.

O nosso personagem pega um cartão do bolso e coloca na maquineta, enquanto o caixa volta a ler o jornal, parece que os caixas daquela lojinha fazem questão de estar bem informados mesmo vivendo naquele fim de mundo. Ao virar a página, nota que a maquineta não liberou a papeleta para ser assinada. O comprador retira o cartão e descobre que é da Blockbuster.

- Não consigo me livrar da concorrência dos blockbusters, diz o Woody, em uma de suas conhecidas frases dúbias que só entende quem sabe que ele não consegue colocar seus filmes em mais do que quatro cinemas no dia do lançamento, ao contrário do que ocorre com os arrasa-quarteirões, tradução de blockbuster, se me permite o esclarecimento. Com seu jeito estabanado, o personagem vai retirando de cada bolso outros cartões, sendo três de drogarias, dois de sex-shops, cinco de livrarias e um de outra casa de aluguel de filmes, especializada em clássicos, a E Pur Se Movie, trocadilho que só alguns pouquíssimos espectadores vão entender, mas que se danem os espectadores, eu faço filmes é para mim mesmo, dirá ele depois em entrevista coletiva, antes de ir tocar saxofone naquele barzinho da Quinta Avenida, imitando o Luis Fernando Veríssimo, que nunca dirigiu filme algum.

- Este cartão caiu de seu bolso, diz-lhe uma senhora gorda e feia, que lhe entrega um cartão da American Card.

Ele olha para o cartão e exclama: "Não caia na rua sem ele". Talvez alguns espectadores entendam a piada. A senhora gorda, pela cara mais feia que faz, certamente não entendeu.

Terminada a compra ele procura um modo de segurar o, argh!, pacote de modo a cobrir a mancha ovalada da parte dianteira da calça, que decorreu da desatenção dele ao conselho paterno: As três batidinhas são a segunda coisa mais importante que você vai fazer com esse membro. A primeira é a circuncisão.

Surpresa das surpresas, com o passar do tempo, a tal mancha simplesmente desapareceu! Feliz da vida ele atira o maldito pacote na lata de lixo existente ao lado da porta da saída, sob a pia, onde ele lavará as mãos, para se livrar de vez daquele maldito cheiro de, argh!, coelho.

Antes que o caixa pudesse avisá-lo, se é que algum caixa estaria disposto a avisá-lo, ele descobre que a torneira da tal pia está com defeito e, assim que acionada, despeja água para todos os lados. Especialmente na parte da frente de sua calça. Onde produz uma mancha escura ovalada.

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A coluna Circus, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes, autor do livro "Justiça & Caos".