segunda-feira, 9 de março de 2009

Salada com Café: Episódio 2 - Higuita o Escorpião

Boa tarde caros saladeiros!

Mais um post! Estamos vivos ainda! Ai vai um excelente texto do engenheiro civil e professor da USP Marcos Rodrigues, publicado na Edicão 15 da Revista "Brasileiros" (outubro/2008), diponível no link RARAS.

Segue também o vídeo da linda defesa do goleiro Higuita, que ao fim farão questão de assistir!

Aproveitem!

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Como eu morava no primeiro andar, foi lá debaixo mesmo que tudo veio. Ela bateu o portão berrando que eu era um louco, esquisotímico. Não agüentava mais meu transtorno obsessivo-compulsivo. Esquisotímico? O que é isso? E meus vizinhos, e o porteiro, como é que fica tudo isso?

A história é que eu gosto de futebol. Na verdade, só de algumas coisas do futebol. Não agüento esse futebol que anda por aí. Com esse negócio de passar de lado, se atirar no chão, beijar camisa, abraçar técnico, comentar juiz. Eu não agüento. Por isso me dedico ao culto dos grandes momentos do futebol. O que eu gosto mesmo são as coisas raras do futebol. Que são raras, claro. Gosto mais ainda das coisas singulares. Essas, curiosamente, estão ficando cada vez mais raras.

Foi esse meu interesse, minha devoção, que gerou toda a gritaria no portão. Eu havia começado apresentando minha visão do assunto e, numa deferência especial, apresentei a ela a minha maior preciosidade. Falei da defesa do escorpião realizada pelo grande goleiro René Higuita, colombiano, no estádio de Wembley, contra a Inglaterra, na primavera de 1995.

Ia o jogo já pela metade quando uma bola vai a gol. Digo que a bola foi a gol porque foi mal chutada por um inglês inexpressivo no meio do arco. Dois palmos acima da cabeça do goleiro. Uma bola fácil. Mas Higuita não é um homem para coisas fáceis. Não resistiu. Arriscou a carreira. Arriscou a vida. Arriscou tudo: em cima da linha de gol, ele me dá um salto para frente, com os braços abertos, como se fosse dar um anjo de trampolim, e defende a bola com a sola das chuteiras, que girou em suas costas rumo ao quadril. Desceu ao gramado já imortal. Essa eu vi, lá mesmo. O estádio paralisou. O jogo parou naturalmente, o juiz entorpecido não sabia o que fazer. Gradualmente começou um aplauso longo, perplexo e respeitoso. O Higuita sabia o que havia ocorrido. Eu também, presto atenção nessas coisas: foi um evento futebolístico singular individual com minha participação presencial passiva. Higuita não precisou de ninguém. Aí está a superioridade dele sobre as coisas do Pelé que, coitado, sempre precisou de um coadjuvante ativo. Como disse, a bola veio ao Higuita. Ele, iluminado, naquele átimo, cedeu à compulsão. Naquele instante fez, pela primeira vez no futebol, o belo individual. Isso tudo num Wembley ensolarado, coisa bastante rara, mas não singular.

Como ela não entendia de futebol e não havia nem ouvido falar da memorável defesa, me ofereci para ilustrar. Eu já havia visto dezenas, talvez centenas, de vezes.

Fiquei na cabeceira e pedi que ela, do pé da cama, jogasse o travesseiro numa parábola que passasse dois palmos acima de minha cabeça. Ela até que fez tudo direitinho, mas falhei na primeira, claro. Não passei nem perto. Para que ela não pensasse que eu era louco, expliquei que nem me passava pela cabeça fazer algo próximo do Higuita, eu queria apenas ilustrar. Eu representaria para que ela entendesse. Só isso. Ela insistiu que já havia entendido, mas eu pedi que jogasse outra vez, ela aquiesceu. Errei de novo. E olha que eu estava em minha casa, na minha cama, na minha cabeceira, com meu travesseiro.

Pedi mais uma vez e mais outra e assim fomos tentando. Depois de vinte e oito, ela disse vamos parar, definitivamente, vamos parar. Eu disse não posso. Ela argumentou e eu disse por favor, não posso parar. Eu disse ainda educadamente pelo amor de Deus, até eu acertar. Ela foi se irritando e, em meio a umas discussões desgastantes, fomos tentando. Eu não estou em forma e fui me cansando. Decerto não havia nem mais graça nos meus saltos. Mas eu precisava me livrar daquele encargo. E fui me cansando e tudo foi ficando mais difícil, sobretudo com ela. Nós estávamos na quadragésima oitava e eu precisava acertar em cinqüenta. Precisava porque precisava. Mas ela inexplicavelmente parou e jogou o travesseiro pela janela. Disse game over. Assim mesmo, uma frescura.

Implorei, pedi outro, pelo amor de Deus, mais unzinho, mas não teve jeito mesmo. E o amor? Onde foi parar este comportamento moral axiológico mais elevado? E o partilhar da impressão estética singular? Ela não quis saber de mais nada. Nem de mim. Se vestiu, pegou a bolsa e se mandou. Uma fera.
Eu, incompreendido, vesti meu pijama e fui pra janela. Lá de cima escutei tudo e, ofendido, fui dormir. Pensando na mulher do Higuita. Decerto uma mulher sensata, amorosa e compreensiva. São muito raras hoje em dia.

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*Marcos Rodrigues é engenhero civil pela Escola Politécnica da USP, Master of Sciences, pela University of Birmingham, Inglaterra, e Doctor of Philosophy pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli - USP, na área de Informações Espaciais.


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